3 de fev. de 2017

A biblioteca de meio bilhão de dólares que cuidará do legado de Obama

Autoria: Mariana Santos.
Fonte: BBC. Data: 17/01/2017.
Documentos e objetos referentes aos oito anos de mandato do democrata estão sendo transportados há meses para um depósito, mas a construção da biblioteca que levará o nome do primeiro presidente negro americano e que abrigará esses arquivos só ganhará impulso a partir de sua saída da Casa Branca.
Distante da Presidência, o habilidoso levantador de fundos Obama deve concentrar esforços em conseguir recursos para a obra, que, além da biblioteca, contará com museu e área para eventos.
E o primeiro ano após deixar o cargo, dizem especialistas, será crucial para esta empreitada.

Tecnologia de ponta

Previsto para ser um espaço com tecnologia de ponta para entreter os visitantes, o prédio será erguido na região sul de Chicago a um custo estimado pela imprensa americana em pelo menos US$ 500 milhões (R$ 1,6 bilhão), com alguns falando em até US$ 1 bilhão (R$ 3,2 bilhões).
Mas Obama não vai começar a campanha de arrecadação do zero. Discreta, a articulação para tocar o projeto da biblioteca presidencial começou ainda no início de seu segundo mandato.
Em janeiro de 2014 o presidente criou a Fundação Barack Obama, que passou a arrecadar fundos em seguida.
Mas em seus dois primeiros anos de existência, a fundação conseguiu levantar tímidos US$ 7,5 milhões - os valores doados em 2016 ainda não foram revelados. A expectativa é, no entanto, que essa quantia dispare no momento em que ele deixar a Presidência.
Martin Nesbitt, diretor da fundação e amigo de Obama, explicou em julho passado que, enquanto o democrata estivesse no cargo, as doações teriam valores limitados e ficariam reduzidas a um "pequeno grupo de amigos e apoiadores de longa data do presidente".
A partir de agora, a fundação poderá aceitar doações de empresas e pessoas físicas e jurídicas estrageiras. Entre os principais doadores da biblioteca devem estar os mesmos entusiastas das duas campanhas de vitoriosas de Obama.

Conflitos de interesse

Embora ainda esteja no início da arrecadação, a Fundação Obama não tem escapado das críticas de organizações que pedem mais transparência na política americana.
Jantares e encontros que Obama e a esposa, Michelle, promoveram com potenciais doadores despertaram questionamentos sobre um possível conflito de interesses e trouxeram à tona o debate sobre a lei que permite com que as fundações presidenciais não revelem o nome de seus doadores nem as quantias doadas.
Levantamento divulgado no ano passado pela organização MapLight, que pesquisa a influência do dinheiro na política americana, revelou que, dos 39 doadores divulgados pela Fundação Obama até aquele mês, 15 participaram de encontros reservados com o presidente na residência oficial.
"Um dos problemas de quando uma fundação começa a levantar recursos quando o presidente ainda está no cargo é que não se sabe quem está doando e nem quanto está sendo doado", afirma Daniel Shuman, diretor da organização Demand Progress, à BBC Brasil.
"E tem havido escândalos associados a presidentes anteriores e o levantamento de recursos para suas bibliotecas."
O ativista lembra que, em 2008, o jornal Sunday Times denunciou a ação do lobista Stephen Payne, ligado ao então presidente George W. Bush, que oferecera acesso ao governo em troca de uma doação de "centenas de milhares de dólares" à então futura biblioteca do repulicano.
Schuman cita ainda o caso do perdão concedido por Bill Clinton ao financiador Marc Rich, condenado por evasão de divisas e por relações comerciais com o Irã enquanto o país estava sob embargo, após uma doação de US$ 450 mil da ex-mulher dele à Fundação Clinton.
Durante a última campanha presidencial, a então candidata Hillary Clinton foi questionada sobre doações estrangeiras à fundação da família enquanto ela era secretária de Estado.
Embora os ex-presidentes não sejam obrigados a construir uma biblioteca para guardar registros do período em que ocuparam a Casa Branca, os mandatários veem nas fundações uma oportunidade de dar publicidade a seu legado e de manter sua influência na esfera política.
Nos EUA, há 13 delas. A primeira foi aberta por Franklin D. Roosevelt nos anos 1940.
"Além da chance de esses doadores poderem influenciar figuras políticas, essa situação acaba criando oportunidades reais de corrupção. Isso precisa mudar", opina Schuman, lembrando que há um projeto de lei tramitando no Congresso americano há quase dois anos para obrigar fundações presidenciais a declararem doações acima de US$ 200.

Fundo para manutenção

Para Anthony Clark, pesquisador e autor de The Last Campaign (A Última Campanha; 2015), sobre bibliotecas presidenciais nos Estados Unidos, ex-presidentes americanos também usam os centros que levam seus nomes como uma "plataforma para o período pós-presidência".
Para Clark, o atual conceito das bibliotecas desvirtua a ideia inicial de Roosevelt: ter um espaço para preservar documentos durante um período de guerra.
De fato, ao longo dos anos, as bibliotecas foram se tornando mais monumentais, complexas e onerosas. O Obama Presidential Center contará, por exemplo, com uma biblioteca digital, instalações modernas e equipamentos de ponta.
Já na Biblioteca e Museu Ronald Reagan, uma das atrações é exposição do Air Force One, o avião usado pelo ex-presidente durante seu mandato.
Outro problema apontado por Clark é o custo de manutenção dos centros. Atualmente, o governo americano gasta cerca de US$ 70 milhões por ano com as bibliotecas presidenciais, que, após construídas, precisam ser doadas ao governo.
A fim de garantir recursos para manter esses centros no futuro, a lei prevê que as fundações devem repassar 60% - eram 20% até George W. Bush - de todas as doações para um fundo de reserva. Mas, segundo o especialista, há maneiras de driblar a legislação e entregar valores bastante inferiores ao estipulado no papel.
Ele explica que, embora as bibliotecas também arrecadem recursos por meio de bilhetes de entrada e promoção de atividades, em algumas, especialmente as de ex-presidentes mais antigos ou pouco populares, o número de visitantes cai ano a ano.
E, se a tendência de espaços high-tech, como o futuro Obama Center, com alto custo de manutenção, se estabelecer, isso pode ser um problema para os cofres públicos no futuro, diz Clark.
"Quando ninguém mais se lembrar direito quem foram esses presidentes de agora, daqui a 40 ou 50 anos, o que acontecerá com essas biblotecas?"

Polêmica também no Brasil

Repasses de empresas a institutos de ex-presidentes também não precisam ser divulgadas - e logo, geram suspeitas - no Brasil.
Um dos alvos da operação Lava Jato são doações no valor de R$ 30,7 milhões ao Instituto Lula, que coordena atividades relacionadas ao legado do ex-presidente, e à LILS, empresa que cuida de suas palestras.
Em dezembro, o juiz federal Sergio Moro aceitou uma denúncia contra Lula em que ele é acusado sob a suspeita dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro em contratos firmados entre a Petrobras e a Odebrecht.
De acordo com a investigação, parte do dinheiro doado teria sido usado para comprar um terreno na zona sul da cidade de São Paulo onde seria construída a sede do instituto (R$ 12,4 milhões), que nunca chegou a ser erguida no local, e um apartamento em frente ao que o ex-presidente mora em São Bernardo do Campo (R$ 504 mil).
Segundo o Ministério Público Federal, há indícios de que esse dinheiro possa ter sido desviado da Petrobras, já que boa parte dele foi repassado por empreiteiras envolvidas no escândalo de corrupção flagrado pelas investigações.
Entre essas empresas está a Odebrecht, que entre 2011 e 2012 também repassou R$ 975 mil ao Instituto Fernando Henrique Cardoso, conforme descobriu a Polícia Federal. Os dois institutos negam qualquer irregularidade.
José Sarney, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso são os únicos com espaços destinados a exibir seus acervos. O de Sarney está na Fundação da Memória Republicana Brasileira, que funciona em um prédio histórico em São Luís, no Maranhão.
Em sua primeira versão, ainda sob o nome de Fundação José Sarney, ela foi alvo de uma investigação por indícios de desvios de verba pública repassada à instituição pela Petrobras e fechou suas portas em 2009. A nova fundação foi criada dois anos depois, e seu patrimônio, doado ao Estado.
O acervo de Itamar, no Memorial da República Presidente Itamar Franco, junto à Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ambos são mantidos com dinheiro público. Já o Instituto Fernando Henrique Cardoso recebe dinheiro privado.
De acordo com o Instituto Lula, o projeto de construção do Memorial da Democracia, que incluiria uma biblioteca presidencial em suas instalações, foi embargado pelo Ministério Público de São Paulo - por isso, afirma a assessoria de imprensa, o acervo do petista não está exposto.
Apesar de a lei brasileira prever ajuda financeira a ex-presidentes que queiram disponibilizar seu acervo ao público, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) explica que, nos últimos anos, devido à política de corte de gastos do governo, o auxílio limitou-se ao financiamento de alguns projetos.
Os governos federal ou estadual só assumem custos de preservação dos acervos quando eles são doados ao poder público, como no caso de Itamar Franco e Sarney.
Crítico ao uso de dinheiro público para bancar acervos presidenciais, José-Matias Pereira, professor de Administração e Finanças Públicas da Universidade de Brasília, acredita que eles acabam sendo usados para "enaltecer" o ex-ocupante do Palácio do Planalto e defende mais transparência na prestação de contas.

"É legítimo que alguém que passe pelo poder deixe algum tipo de memória. O que não pode é fazer que o contribuinte pague por isso, seja tirando dinheiro do orçamento para manter os institutos ou por meio de acertos espúrios com empresas doadoras", afirma Pereira. 

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